Portugal em Derrapagem
As derrapagens surgem em diferentes formas e conteúdos. Umas são meras “escorregadelas”, discretas, mas que pela sua regularidade acabam por ter efeitos perversos a longo-prazo; outras têm um efeito visível, surgem isoladas e arrebatadoras. A mais recente foi a derrapagem de 100 milhões de euros nas obras realizadas no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto. A auditoria realizada pelo Tribunal de Contas revelou um custo 1/3 superior ao orçamentado e 4 anos de atraso face ao inicialmente definido. Porquê? A maioria dos encargos adveio de “trabalhos a mais e a menos, erros e omissões”. Esta justificação soa a música repetida e repetitiva, se nos lembrarmos, por exemplo, do disparate que foi a obra da Casa da Música.
Dir-se-ia que é natural existirem “desvios” na realização de qualquer obra, já que aquilo que foi idealizado nem sempre é viável e os pressupostos que inicialmente foram tidos em consideração nem sempre são realísticos. Estes factos poderão dar lugar a desvios orçamentais, que não fazem sentido serem suportados pelas construtoras. De acordo. O ponto crucial, no entanto, é que os tais “desvios” resultam sempre em “derrapagens” colossais a cargo do Estado, sempre no mesmo sentido: custo adicional. Ora, isto não faz sentido, nem é concebível num país em que muitas necessidades continuam ainda por satisfazer: um Estado pagador, maior qualidade de ensino, cuidados de saúde, apoio social e empresarial, entre muitos outros.
Num artigo escrito no Diário de Notícias, Mário Soares alertou para o facto de estar criado um clima de desconfiança e revolta, “com as desigualdades sociais sempre a crescer”. Ao tomarmos conhecimento de mais uma derrapagem e sabendo da grande preocupação social de Mário Soares, não podemos deixar de relembrar a sua célebre frase na Casa da Música: “Mas qual é o problema da derrapagem? O que interessa é que temos aqui uma coisa muito bonita. A derrapagem não interessa; o que interessa são as ideias.” É esta preocupação social que tem reinado na política portuguesa, desde o nível local ao nacional: o que realmente interessa é a ideia, ainda que o mais certo seja que resulta numa derrapagem... Enfim, que ao menos nos reste uma coisa muito bonita...