A Revolução dos Malmequeres
Caro leitor, imagine que sai de manhã às 7h30, trabalha a 30km de casa, e só volta a pôr a chave na sua porta bem perto das oito da noite; por norma, chega cansado e as únicas coisas que lhe vêm à cabeça são comer e descansar. A somar a tudo isto, o seu cônjuge tem também um horário bastante rígido, o que dificulta as lides da casa e os cuidados de que os seus dois filhos, o Manuel e a Maria, carecem. Tarefas quotidianas como limpar a casa, preparar as refeições, lavar a roupa, fazer as camas, comprar o pão do dia, tornam-se actividades impossíveis de conciliar com a rotina diária da sua família. A solução para o seu problema é, pois, contratar uma empregada doméstica, a sua vizinha D. Alzira, que você tem “em muito boa conta”.
Mas a questão é bem mais complexa do que à primeira vista pode parecer. Para celebrar o tal contrato é, por lei, obrigado a pagar pelo menos o salário mínimo, subsídios de férias e de Natal e a fazer um seguro. Até aqui tudo bem. Todavia, por força da Revolução do 15 de Abril (simbolicamente conhecida como a dos Malmequeres), o Sindicato dos Operários Domésticos Associados (SODA) conseguiu que fosse aprovada uma lei que impede o despedimento da sua empregada. Além disto, o SODA reivindicou que de três em três anos você tem que aumentar o salário em 5%, além, claro, das correcções anuais para compensar a inflação.
Você encontra-se numa posição delicada: por um lado necessita dos serviços da D. Alzira, pois isso ajudaria em muito a sua vida diária, mas por outro lado sabe que isso implica um compromisso a longo prazo. Mesmo assim, as circunstâncias obrigam-no a aceitar estes termos e contratar a D. Alzira, que entra logo ao serviço.
Nos primeiros meses foram só maravilhas. Comida quente e saborosa, roupa engomada e cheirosa, casas-de-banho esterilizadas e a brilhar e a casa a cheirar a flores, sem vestígios de pó ou sujidade: “tudo nos trinques!” Com o passar do tempo, o serviço da D. Alzira começa a perder qualidade e os vestígios da sua inactividade começam a ser visíveis: mais um problema para resolver. Fala com a sua empregada e ela diz-lhe: “Olhe, Sr(a). Leitor(a), não sei que lhe faça; já dou o meu melhor. Está mal, arranje outra!”. Não a podendo despedir, e com o dilema do trabalho por fazer, vê-se então obrigado a contratar também a D. Josefa par “ajudar” a D. Alzira. O tiro sai-lhe pela culatra: a qualidade do serviço pouco melhora e ainda tem de resolver os conflitos entre as duas senhoras, que passam uma boa parte do dia a ler a “Marineide + Atrevida” e a discuti-la. No entanto, como não pode gastar mais do que aquilo que aufere, não contrata mais ninguém. Nem, claro, despede as duas empregadas que já contratou.
Três meses depois, por força do destino, o seu cônjuge decide abrir uma loja perto de casa, passando a ter mais tempo para cuidar das tarefas domésticas. Sendo assim, decide destacar a D. Alzira para os “quadros excedentários”, visto que não a pode despedir, resolvendo, também, o problema dos conflitos. Mas eis que lhe surge a possibilidade de rentabilizar os custos que tem, dando formação à D. Alzira para se tornar secretária do seu cônjuge, proposta essa que a ela aceita. A formação implica custos que serão, claro está, suportados por si. Mas a D. Alzira, já com os seus quase 60 anos, executa mal as tarefas e revela ter baixa produtividade. Pouca sorte!
Com certeza que o leitor já percebeu onde queremos chegar: porque razão não podem os trabalhadores do Estado serem despedidos?
O exemplo, que aqui caricaturamos, ilustra bem o quão ridículo e ineficiente é o nosso sistema da administração pública. Pretende-se hoje incutir uma cultura de remuneração do mérito com base na qualidade do trabalho desempenhado. Mas será isso suficiente? Não. Uma coisa é a pessoa saber que, se não se empenhar, não progredirá na carreira (por obter uma avaliação negativa), ainda que tenha o emprego garantido; outra é saber que, se não se esforçar e lutar por ser melhor, corre o risco de ser despedido e substituído por alguém mais produtivo.
Uma prova da mediocridade do nosso sistema é a lei dos supranumerários (quadro de excedentes) da função pública, para onde são destacados aqueles que já não são necessários nas funções que ocupavam e não podem ser despedidos, podendo depois obter formação noutra área do conhecimento onde haja vagas (na condição de ‘excedentários’, os funcionários podem ficar até um ano em casa a receber o salário; se até essa data limite não forem incorporados noutros serviços, perdem um sexto do salário inicial). Mas isto leva a que donas Alziras se transformem em presumíveis secretárias, ocupando lugares que podiam ser preenchidos por pessoas mais competentes, qualificadas e produtivas, recrutadas no mercado de trabalho.
Será que a Constituição que temos, mais do que a que queremos, é a que realmente precisamos? Se nenhum de nós aceita ter um empregado vitalício, como poderemos, todos nós (Estado) aceitar funcionários nesses termos? Os direitos adquiridos fazem parte de uma época, não do Tempo.
Luís Soares
Nuno Miguel Santos
Mas a questão é bem mais complexa do que à primeira vista pode parecer. Para celebrar o tal contrato é, por lei, obrigado a pagar pelo menos o salário mínimo, subsídios de férias e de Natal e a fazer um seguro. Até aqui tudo bem. Todavia, por força da Revolução do 15 de Abril (simbolicamente conhecida como a dos Malmequeres), o Sindicato dos Operários Domésticos Associados (SODA) conseguiu que fosse aprovada uma lei que impede o despedimento da sua empregada. Além disto, o SODA reivindicou que de três em três anos você tem que aumentar o salário em 5%, além, claro, das correcções anuais para compensar a inflação.
Você encontra-se numa posição delicada: por um lado necessita dos serviços da D. Alzira, pois isso ajudaria em muito a sua vida diária, mas por outro lado sabe que isso implica um compromisso a longo prazo. Mesmo assim, as circunstâncias obrigam-no a aceitar estes termos e contratar a D. Alzira, que entra logo ao serviço.
Nos primeiros meses foram só maravilhas. Comida quente e saborosa, roupa engomada e cheirosa, casas-de-banho esterilizadas e a brilhar e a casa a cheirar a flores, sem vestígios de pó ou sujidade: “tudo nos trinques!” Com o passar do tempo, o serviço da D. Alzira começa a perder qualidade e os vestígios da sua inactividade começam a ser visíveis: mais um problema para resolver. Fala com a sua empregada e ela diz-lhe: “Olhe, Sr(a). Leitor(a), não sei que lhe faça; já dou o meu melhor. Está mal, arranje outra!”. Não a podendo despedir, e com o dilema do trabalho por fazer, vê-se então obrigado a contratar também a D. Josefa par “ajudar” a D. Alzira. O tiro sai-lhe pela culatra: a qualidade do serviço pouco melhora e ainda tem de resolver os conflitos entre as duas senhoras, que passam uma boa parte do dia a ler a “Marineide + Atrevida” e a discuti-la. No entanto, como não pode gastar mais do que aquilo que aufere, não contrata mais ninguém. Nem, claro, despede as duas empregadas que já contratou.
Três meses depois, por força do destino, o seu cônjuge decide abrir uma loja perto de casa, passando a ter mais tempo para cuidar das tarefas domésticas. Sendo assim, decide destacar a D. Alzira para os “quadros excedentários”, visto que não a pode despedir, resolvendo, também, o problema dos conflitos. Mas eis que lhe surge a possibilidade de rentabilizar os custos que tem, dando formação à D. Alzira para se tornar secretária do seu cônjuge, proposta essa que a ela aceita. A formação implica custos que serão, claro está, suportados por si. Mas a D. Alzira, já com os seus quase 60 anos, executa mal as tarefas e revela ter baixa produtividade. Pouca sorte!
Com certeza que o leitor já percebeu onde queremos chegar: porque razão não podem os trabalhadores do Estado serem despedidos?
O exemplo, que aqui caricaturamos, ilustra bem o quão ridículo e ineficiente é o nosso sistema da administração pública. Pretende-se hoje incutir uma cultura de remuneração do mérito com base na qualidade do trabalho desempenhado. Mas será isso suficiente? Não. Uma coisa é a pessoa saber que, se não se empenhar, não progredirá na carreira (por obter uma avaliação negativa), ainda que tenha o emprego garantido; outra é saber que, se não se esforçar e lutar por ser melhor, corre o risco de ser despedido e substituído por alguém mais produtivo.
Uma prova da mediocridade do nosso sistema é a lei dos supranumerários (quadro de excedentes) da função pública, para onde são destacados aqueles que já não são necessários nas funções que ocupavam e não podem ser despedidos, podendo depois obter formação noutra área do conhecimento onde haja vagas (na condição de ‘excedentários’, os funcionários podem ficar até um ano em casa a receber o salário; se até essa data limite não forem incorporados noutros serviços, perdem um sexto do salário inicial). Mas isto leva a que donas Alziras se transformem em presumíveis secretárias, ocupando lugares que podiam ser preenchidos por pessoas mais competentes, qualificadas e produtivas, recrutadas no mercado de trabalho.
Será que a Constituição que temos, mais do que a que queremos, é a que realmente precisamos? Se nenhum de nós aceita ter um empregado vitalício, como poderemos, todos nós (Estado) aceitar funcionários nesses termos? Os direitos adquiridos fazem parte de uma época, não do Tempo.
Luís Soares
Nuno Miguel Santos
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